Os seis trabalhadores da construção civil estavam
perdidos em meio à floresta amazônica, no norte de Rondônia. Algumas
horas antes, eles tinham corrido mato a dentro para fugir do caos que
tomara o canteiro de obras da usina hidrelétrica de Jirau, onde a
Polícia Militar reprimia o movimento grevista, em 2011. Depois de andar
cerca de seis quilômetros, o grupo tentava encontrar o caminho de volta à
obra, ou a estrada, ou qualquer sinal de urbanidade. Sem sucesso.
Ao invés disso, foram encontrados.
Sem perceber que estavam sendo cercados, os trabalhadores
uniformizados se viram rodeados por oito índios nus. Eles tinham o rosto
e corpo pintados, flechas em punho e “murmuravam" palavras em uma
língua que os trabalhadores não conheciam. Mas logo interpretaram o
sentido: estavam rendidos.
Índios isolados no Acre, fotografados pela Funai em 2008
Hoje, excepcionalmente, esse espaço não será dedicado a um retrato,
mas a um encontro. Encontro que pode servir de pista para compor o
retrato dos povos indígenas que habitam o nosso país e os quais temos
tanta dificuldade de entender.
Assustados, os trabalhadores da usina se comportaram como
prisioneiros dos índios. Seguiram seus passos e pararam quando eles
sinalizaram. O coração disparava a cada vez que os índios se reuniam em
círculo. Observaram a construção de uma espécie de churrasqueira com
gravetos, onde um porco do mato foi assado. Disfarçando o mal estar,
comeram cada pedaço de carne que lhes foi oferecido. À noite, um dos
trabalhadores foi repreendido pelos colegas por espiar os seios da índia
mais nova, a regra era olhar para o chão.
A madrugada avançou, alguns índios deitaram e adormeceram. Os
trabalhadores ficaram alertas. Pela manhã, caminharam até chegar a um
local onde se ouvia um barulho familiar. Os índios sinalizaram em
direção ao som, disseram algumas frases que ninguém entendeu e foram
embora. Os trabalhadores correram na direção indicada até que, exaustos,
chegaram à rodovia federal BR 364.
Esse relato foi registrado pela historiadora Ivaneide Bandeira
Cardozo, da ONG indigenista Kanindé, que entrevistou um dos
trabalhadores na presença de um funcionário da Funai (Fundação Nacional
do Índio). Ela acredita que os homens e mulheres descritos sejam parte
de um grupo que a entidade e a Funai tentam rastrear há anos. “Pela
descrição, parecem ser Kawahiba isolados”.
“Isolados” são os índios que não têm contato com a nossa sociedade,
ou porque nunca cruzaram com um não-índio (casos cada vez mais raros) ou
porque recusam o contato.
Na região que foi alagada pela usina de Jirau, havia rastros de um
grupo isolado e nômade. A empresa repassou dinheiro para que a Funai
mapeasse esses rastros. Depois de identificados, eles deveriam ganhar
uma área de proteção. Mas o investimento não foi suficiente para
encontrar ou proteger os índios.
Ao contrário, foram eles que encontraram e salvaram os funcionários
da usina. “É difícil entender o que passou na cabeça dos índios quando
viram os trabalhadores perdidos”, reflete Ivaneide. “Por que decidiram
ajudar? Nunca vamos saber”.
O encontro ocorrido em 2011 é o reflexo oposto do desencontro que se
deu na Câmara dos Deputados essa semana. Na terça dia 16, em uma cena
inédita, os deputados federais correram pelo plenário como uma manada
assustada. Fugiam de homens seminus, pintados de urucum e que balançavam
seus chocalhos para protestar contra a mudança da lei que define como
as terras indígenas são demarcadas.
Se o comportamento dos índios isolados e dos deputados deixa alguma
pista, é que continuamos longe de entender os povos que habitam a nossa
terra.
Quando retornaram à usina, os trabalhadores contaram sobre o
encontro, mas o supervisor deu risada, chamando-os de mentirosos. Como
se fosse impossível haver índios nas proximidades da obra, cravada no
meio da floresta amazônica.
Para Ivaneide, a precisão dos detalhes é a maior evidência da
veracidade da história. “Os trabalhadores eram de outros estados, uma
pessoa sem convivência com indígenas não poderia saber tanto. Ele
descreveu a pintura no peito, os traços no rosto dos homens, diferente
das mulheres, a pena do gavião real, como tratavam a ponta das flechas.
Até os detalhes de como montaram o moquém, que é onde assam a carne”.
Segundo ela, o relato bate com hábitos comuns a etnias que vivem ou
viveram na região, algumas consideradas extintas.
Existem 82 pistas de grupos indígenas isolados no Brasil, é a maior
concentração de povos isolados do mundo. Em março desse ano, os
funcionários da Funai fizeram uma carta aberta
com um “pedido de socorro”. Nela, escrevem que não há equipe para
proteger esses grupos, cujos territórios estão sendo invadidos pelas
grandes obras, madeireiros e traficantes.
Como lidar com índios isolados é um dos temas mais complexos dentro
da política indigenista. Talvez a pequena mensagem deixada pelo grupo
que resgatou os trabalhadores e pelos que invadiram o congresso seja
justamente sobre os nossos limites. Os índios tem um modo diferente de
ser, nem sempre seremos capazes de entende-los. Talvez esses encontros
sejam os momentos para refletir sobre os impactos das nossas escolhas. E
fazer um esforço para, a partir dessa nova realidade, respeitar as
escolhas deles.
Por Ana Aranha