sexta-feira, 19 de abril de 2013

A Arquitetura do Extermínio

Para quem não acredita, muito boa informação sobre a escalada gradual do nazismo germânico pode ser encontrada no filme "Arquitetura da destruição" ["Undergångens arkitektur"], um clássico do cinema documentário produzidocom pouquíssimos recursos materiais.
Não nos iludamos quanto à semelhança entre nazistas históricos e alguns homens do presente (evangélicos ou não) que andam por aí tratando coisas demasiadamente humanas como se fossem as trombetas do Apocalipse. O nazismo também começou assim: meia dúzia de psicóticos atiçando os instintos higienistas do povo, repetindo à exaustão que a Alemanha estava moralmente poluída, degradada... Deu no que deu. Logo após a ascensão de Adolf Hilter ao poder, loucos e alienados já eram incinerados em falsos manicômios secretos. Depois, foi o Holocausto: ciganos, homossexuais, judeus, negros. Nenhum desses grupos agradava ao rancor de província dos "certinhos".

O filme reúne uma impressionante documentação fotográfica e audiovisual sobre o chamado "Terceiro Reich", mostrando inclusive que a "mania de limpeza" de Hitler e seus comparsas era de uma coerência horripilante. De maneira monstruosa, baseava-se em padrões formais de beleza "inspirados" nos contornos do Classicismo e da Antigüidade greco-romana. Com essa documentação e uma locução primorosa (na voz do consagrado ator Bruno Ganz), o diretor do filme, Peter Cohen, mostra bem aos seus espectadores como Hitler foi uma espécie de idiota pop: confundiu a vida real com a fabricação tirânica de um mundo "puro". E, como era um borderliner, decidiu "adequar" seu país àquela fantasia diabólica, eliminando fisicamente os "indivíduos" que, segundo o seu juízo delirante, eram por assim dizer "pontos fora da curva" em relação a uma suposta cultura germânica: aberrações e anomalias segundo os princípios organizadores de sua obssessão. Isso lembra algo sobre o besteirol conservador atual ao redor dos gays?
Grande parte dos pregadores que hoje jogam sobre nós sua peçonha patinam nessa mesma loucura esquisóide. Humanismo zero. Seu desvio consiste em negar aos irmãos o direito à lacuna, ao vazio, à ausência e à falha, como se fôssemos máquinas retilíneas de obedecer a preceitos.
Por isso, quem tem a cabeça e o coração no lugar certo se assombra quando vê engravatados em catarse que, em nome de princípios morais religiosos, glorificam o assassinato brutal de poetas, compositores e humanistas de todo o tipo. O delírio hitlerista também tinha seu quê de teocracia: Hitler achava-se um herói cuja missão eram "limpar" a Europa (e o Mundo) de uma alegada "decadência". E a pior das decadências, para ele e seus seguidores, era exatamente a "mistura".
No contexto dos debates atuais sobre nazismo e direitos humanos, sobretudo no Brasil, o filme de Peter Cohen merece ser visto e revisto. Faz pensar em questões importantes que atravessam a nossa tradição de tolerância e convivência interétnica, que um punhado de malucos decidiu agora atacar.
Por José Guilherme

Índios isolados, trabalhadores em fuga: um encontro amazônico

Os seis trabalhadores da construção civil estavam perdidos em meio à floresta amazônica, no norte de Rondônia. Algumas horas antes, eles tinham corrido mato a dentro para fugir do caos que tomara o canteiro de obras da usina hidrelétrica de Jirau, onde a Polícia Militar reprimia o movimento grevista, em 2011. Depois de andar cerca de seis quilômetros, o grupo tentava encontrar o caminho de volta à obra, ou a estrada, ou qualquer sinal de urbanidade. Sem sucesso.
Ao invés disso, foram encontrados.
Sem perceber que estavam sendo cercados, os trabalhadores uniformizados se viram rodeados por oito índios nus. Eles tinham o rosto e corpo pintados, flechas em punho e “murmuravam" palavras em uma língua que os trabalhadores não conheciam. Mas logo interpretaram o sentido: estavam rendidos.
Índios isolados no Acre, fotografados pela Funai em 2008
Hoje, excepcionalmente, esse espaço não será dedicado a um retrato, mas a um encontro. Encontro que pode servir de pista para compor o retrato dos povos indígenas que habitam o nosso país e os quais temos tanta dificuldade de entender.
Assustados, os trabalhadores da usina se comportaram como prisioneiros dos índios. Seguiram seus passos e pararam quando eles sinalizaram. O coração disparava a cada vez que os índios se reuniam em círculo. Observaram a construção de uma espécie de churrasqueira com gravetos, onde um porco do mato foi assado. Disfarçando o mal estar, comeram cada pedaço de carne que lhes foi oferecido. À noite, um dos trabalhadores foi repreendido pelos colegas por espiar os seios da índia mais nova, a regra era olhar para o chão.
A madrugada avançou, alguns índios deitaram e adormeceram. Os trabalhadores ficaram alertas. Pela manhã, caminharam até chegar a um local onde se ouvia um barulho familiar. Os índios sinalizaram em direção ao som, disseram algumas frases que ninguém entendeu e foram embora. Os trabalhadores correram na direção indicada até que, exaustos, chegaram à rodovia federal BR 364.
Esse relato foi registrado pela historiadora Ivaneide Bandeira Cardozo, da ONG indigenista Kanindé, que entrevistou um dos trabalhadores na presença de um funcionário da Funai (Fundação Nacional do Índio). Ela acredita que os homens e mulheres descritos sejam parte de um grupo que a entidade e a Funai tentam rastrear há anos. “Pela descrição, parecem ser Kawahiba isolados”.
“Isolados” são os índios que não têm contato com a nossa sociedade, ou porque nunca cruzaram com um não-índio (casos cada vez mais raros) ou porque recusam o contato.
Na região que foi alagada pela usina de Jirau, havia rastros de um grupo isolado e nômade. A empresa repassou dinheiro para que a Funai mapeasse esses rastros. Depois de identificados, eles deveriam ganhar uma área de proteção. Mas o investimento não foi suficiente para encontrar ou proteger os índios.
Ao contrário, foram eles que encontraram e salvaram os funcionários da usina. “É difícil entender o que passou na cabeça dos índios quando viram os trabalhadores perdidos”, reflete Ivaneide. “Por que decidiram ajudar? Nunca vamos saber”.
O encontro ocorrido em 2011 é o reflexo oposto do desencontro que se deu na Câmara dos Deputados essa semana. Na terça dia 16, em uma cena inédita, os deputados federais correram pelo plenário como uma manada assustada. Fugiam de homens seminus, pintados de urucum e que balançavam seus chocalhos para protestar contra a mudança da lei que define como as terras indígenas são demarcadas.
Se o comportamento dos índios isolados e dos deputados deixa alguma pista, é que continuamos longe de entender os povos que habitam a nossa terra.
Quando retornaram à usina, os trabalhadores contaram sobre o encontro, mas o supervisor deu risada, chamando-os de mentirosos. Como se fosse impossível haver índios nas proximidades da obra, cravada no meio da floresta amazônica.
Para Ivaneide, a precisão dos detalhes é a maior evidência da veracidade da história. “Os trabalhadores eram de outros estados, uma pessoa sem convivência com indígenas não poderia saber tanto. Ele descreveu a pintura no peito, os traços no rosto dos homens, diferente das mulheres, a pena do gavião real, como tratavam a ponta das flechas. Até os detalhes de como montaram o moquém, que é onde assam a carne”. Segundo ela, o relato bate com hábitos comuns a etnias que vivem ou viveram na região, algumas consideradas extintas.
Existem 82 pistas de grupos indígenas isolados no Brasil, é a maior concentração de povos isolados do mundo. Em março desse ano, os funcionários da Funai fizeram uma carta aberta com um “pedido de socorro”. Nela, escrevem que não há equipe para proteger esses grupos, cujos territórios estão sendo invadidos pelas grandes obras, madeireiros e traficantes.
Como lidar com índios isolados é um dos temas mais complexos dentro da política indigenista. Talvez a pequena mensagem deixada pelo grupo que resgatou os trabalhadores e pelos que invadiram o congresso seja justamente sobre os nossos limites. Os índios tem um modo diferente de ser, nem sempre seremos capazes de entende-los. Talvez esses encontros sejam os momentos para refletir sobre os impactos das nossas escolhas. E fazer um esforço para, a partir dessa nova realidade, respeitar as escolhas deles.
Por Ana Aranha